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18.6.20

Temos que normalizar o consentimento em crianças

Temos que normalizar o consentimento em crianças

Um dos traumas (na falta de melhor palavra, não que seja algo extremamente traumatizante comparado com outras questões, claro) que todos nós recordamos da nossa infância são os amigos dos nossos pais e familiares distantes que nos beijavam, abraçavam e apertavam as nossas bochechas antes de podermos sequer soltar uma lagriminha a demonstrar o nosso descontentamento. Isto para não falar do que quando éramos nós que éramos forçados a ser ativos nas demonstrações de afeto, "vai dar um beijinho ao tio" (o qual nunca o vimos na vida) ou "não se ignora as visitas, vai dar-lhes um abracinho". Ah, maravilhas da vida adulta, agora só cumprimentamos quem queremos e ignoramos o resto, graças a Deus, hehehehe. Isto, na altura, era um drama mais do que os adultos conseguiam compreender, era o fim do mundo para muitos miúdos.

O consentimento em crianças sempre foi uma coisa muito normal para mim, talvez por ainda ter bem presente este trauma na minha cabeça. Nunca dei um beijinho ou um abraço a uma criança sem antes lhe pedir, é automático, algo do género "és tão fofinha, posso dar-te um beijinho?. Às vezes a criança nem precisa de verbalizar para eu perceber aquilo que ela consente, se se aproximar tudo bem, se fugir para o colo da mãe, pronto, não a chateio mais, é simples. 

Acho que esta minha atitude também tem muito a ver com o facto de eu, agora, ser enfermeira. Em enfermagem, quando nós falamos na construção de uma relação terapêutica, nós nunca a tomamos por garantido, e isto também se aplica à pequenada. Claro que, em último recurso temos na mesma que realizar os procedimentos (nomeadamente, as vacinas, as que causam mais choradeiras), mas nunca o fazemos sem antes tentar ganhar a confiança de determinada criança. Uma criança mais à vontade e mais entretida pelo profissional terá mais hipóteses de colaborar do que uma em que essa relação tenha sido logo tomada como garantida. Se até em Enfermagem não tomamos isso por garantido, porque  o fazemos no nosso dia a dia?

Temos que perceber uma coisa de uma vez por todas: as crianças, embora ainda não sejam adultos, já têm indícios de traços de personalidade que se inclinam mais para o ser social ou para o ser mais recatado. Não podemos partir do princípio que todas as crianças são extrovertidas à nascença. São-no com quem conhecem, com quem convivem todos os dias, não significa que o sejam com toda a gente. Lá por serem, por natureza, divertidas e sem filtros, não quer dizer que seja sempre esse o seu modo de agir. Há crianças mais tímidas, em que estes atos de afeto "obrigatórios" as aterrorizam. E isto já nem entrando no tema das fases de desenvolvimento, em que as crianças estão a começar a aprender a "desapegar-se" dos pais e a desenvolver mais contactos sociais - é uma fase normal, algo que tem de ser ultrapassado, mas é com sensibilidade,  devagarinho, não é simplesmente forçá-las, de repente, a dar-se com toda a gente. 

Aliás, no que toca a relação sociais, os pequenos são quase iguais aos adultos: todas as relações se demoram a desenvolver, existem tempo (esta noção de tempo é que é um bocado diferente para eles), confiança e, muito importante, respeito pelo espaço pessoal. Por exemplo se,  aos 20 anos, um primo nosso nos apresenta um amigo, não lhe vamos dar logo um abraço como se o conhecêssemos há anos, porque motivo então é expectável que façamos isso quando temos 5 anos? Mesmo que essa pessoa faça parte da família, se não é costume ela ver a criança com frequência, não podemos esperar que ela tenha a mesma reação do que aqueles familiares que vê todos os dias, ou todos os fins de semana. Lá porque é conhecido dos pais não quer dizer que seja conhecido dos filhos. 

Temos que começar a educar os miúdos desde pequenos para a importância do consentimento: consentimento para afetos, para deixar ou não entrar no seu espaço pessoal, para brincar, e dar-lhes o direito de ficarem chateados caso este seja violado. Acho que esta autonomia é tão importante na vida adulta, porque um comportamento aparentemente inocente na infância pode desencadear relações abusivas no futuro. Quando crescerem, têm de ser capazes de avaliar corretamente se certa pessoa é ou não merecedora do seu afeto, definir os limites que não quer que sejam ultrapassados, reconhecer os seus direitos, e outras formas que podem usar para manifestar amizade (by the way, porque não normalizar que, se não quiserem dar beijinhos a todos os tios, podem mandar beijinhos para o ar, cumprimentos de mão,  high-fives, todas as formas que requerem pouco ou nenhum contacto físico?). 

Acho que insistir nesta temática não significa que estejamos a criar pessoas rudes e antissociais, estamos sim a criar pessoas que sabem respeitar-se e que não dão confiança a qualquer um. Temos que começar a normalizá-lo. Quanto mais cedo aprenderem, mais fácil será no futuro.

21 comentários:

  1. O consentimento em idades mais pequenas acaba por não ser tão explorado, porque, infelizmente, ainda se insiste na ideia de que a criança é um ser inferior. Como não podiam estar mais enganados! Como é óbvio, há questões para as quais não terão maturidade, mas isso faz parte do processo que é o crescimento. Achar que elas não têm uma voz nesta dinâmica social é estar a desrespeitá-las e a retirar-lhes o direito de marcarem a sua posição. Já para não falar de que insistir num determinado comportamento pode despertar reações negativas, que prejudicam o desenvolvimento dos miúdos.

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    1. Acho que é também pelo facto de ainda poderem ser responsáveis pela maioria das decisões da sua vida as pessoas pensam que isso também se aplica a nível social. Na verdade, o seu "ser social" é a primeira coisa a ser desenvolvida e que, portanto, merece ser respeitada desde o início.

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  2. Adorei o seu texto. Concordo totalmente. Acho que a quarentena e o confinamento fez muito mal às nossas crianças e a nós. A nível psicológico!🍀
    -
    Mergulhada nas águas do desejo.

    Beijos e uma excelente noite! :)

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    1. Não é uma situação que aconteça em isolamento, aliás, até acontece menos xD.
      Igualmente :).

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  3. Eu amei seu post e a profundidade que ele nos leva. Tenho péssimas recordações de demonstração de carinho na infância por parentes distantes (na verdade não lembro se eram parentes ou amigos de família) lembro pouquíssima coisa porque eu era pequena, mas eram pessoas achegadas que em suas demonstrações de carinho iam muito além do comportamento de um adulto para uma criança. Não vou falar em detalhes até porque nunca falei isso publicamente, mas era uma época também em que não tinha tanto abuso como tem hoje. Acho que os pais devem ficar mioto atentos. Eu sei que seu post não abrange exatamente isso, mas quando eu comecei a ler lembrei desse fato e me deu vontade de compartilhar meu sentimento como criança. Também concordo que isso de beijinho e abraço tem que partir da criança e tem que deixar ela confortável ao invés de ser forçado.

    Beijos,
    www.nandadoria.com.br

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    1. O meu post não abrange isso,de facto, mas lamento em saber a tua história, do que te aconteceu. Espero que tenhas agora pessoas que te oiçam e toda a ajuda necessária para ultrapassar esse acontecimento infeliz da infância <3.

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  4. Eu nunca gostei que me fizessem isso....fugia a sete pés! Cheguei a fugir para debaixo da mesa.

    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

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  5. Cherry,

    Sempre odiei dar beijos às pessoas. Em pequena ou em adulta. Deixa-me muito pouco à vontade, muito desconfortável. Nem sei sequer explicar porquê.

    E por saber quão desconfortável é, nunca insisto que nenhuma criança seja obrigada a fazê-lo. Tenho sobrinhos e quando o meu irmão lhes dizia para me cumprimentar, fazia questão que não insistissem nisso se eles não quisessem. Porque razão as crianças hão-de dar beijos se não querem? Eu, como sei o que odiava em criança, não quero que passem pelo mesmo. MAsi cedo ou mais tarde, fazem-no voluntariamente sem que precisem estar a dizer-lhes.

    Beijinho e bom fim-de-semana!

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    1. Nem precisa de ter explicação, é a apenas a personalidade de cada um :).
      E é esse o comportamento correto, tomara que fossem todos assim.
      Beijinhos e igualmente :).

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  6. Bonjour, miss Cherry. Ça va?

    O seu texto veio em uma boa hora na minha vida, porque ontem mesmo, quando eu estava assistindo à nova temporada de Queer Eye, teve um episódio em que eles ajudaram uma médica pediatra a se sentir bem consigo mesma. E, depois da transformação, o programa mostrou um pouquinho da rotina dela dentro da clínica e, quando ela atendeu a um garoto de seus doze anos mais ou menos, ela perguntou pra ele se ela poderia tocar nele para examiná-lo.

    Eu nunca tinha visto nada assim antes e isso despertou o meu interesse por pesquisar mais sobre consentimento, não só em situações óbvias de abuso, mas em situações do dia a dia mesmo como as que vocÊ citou no post. Se antes, já me policiava acerca de como tratar as crianças, agora tenho um motivo extra de atenção e vigília às outras pessoas também.

    Obrigada por esclarecer mais sobre a questão, flor de cerejeira. Beijos açucarados e au revoir.

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    1. Quero muito ver essa série by the way. Nos centros de saúde onde estagiei, também já vi fazerem isso, é esse o comportamento correto a adotar.

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  7. Nessas coisas respeito muito a vontade do meu pequeno. Se quer, quer. Se não quer, quererá mais tarde!

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  8. Por acaso não gostava nada de em pequena me mandarem dar beijos em certas pessoas, talvez por isso, hoje, não seja muito beijoqueira eheheh!!
    xoxo

    marisasclosetblog.com

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  9. Quando eu não queria dar beijinhos, os meus pais nunca mas nunca me obrigavam, para não desenvolver o trauma. Hoje em dia ainda detesto dar beijinhos e demonstrar afetos físicos. Tenho muitos amigos, adoro-os a todos de coração mas não é preciso andar a tocar uns nos outros aha

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  10. Abordas uma questão super importante e com a qual concordo totalmente. As crianças, infelizmente, parece que são vistas como seres inferiores e, embora ainda não tenham idade suficiente para perceber certas coisas, nesta situação dos cumprimentos acho que não devem ser obrigadas a fazê-lo e ponto. Até se pode dizer "Não dás um beijo ao tio X?", mas se a criança não o quiser fazer deve sentir-se nesse direito, obrigá-la não me faz sentido. A criança sentir-se compreendida é meio caminho andado para uma relação mais saudável entre pares e a nível do seu desenvolvimento :)

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  11. Uma das história favoritas da Bia é sobre consentimento "Nee is OK" que será qualquer coisa como "Podes dizer não". há 1 ano que o temos (ela tem 2,5 anos) e na altura não sabia se o devia ler, mas ela pediu e passou a ser um livro que lemos frequentemente.
    Claro que dentro de linguagem apropriada nunca é cedo para falar de consentimento, sexualidade, igualdade/desigualdade, etc...

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